domingo, 9 de dezembro de 2012

As Confissões da Arte: A Confissão da Leoa, de Mia Couto


      É conhecidíssima a ideia de que a arte imita a vida. Encontraríamos em suas manifestações, portanto, uma mimese do mundo tal qual o conhecemos. Mas há também uma variação, que prega que a vida é que imita a arte. Prova disso é como os produtos estéticos foram capazes de ditar padrões, comportamentos. Basta lembrar a onda de suicídio coletivo que Werther (1774), de Goethe, provocou na Europa. Ou, mais recentemente, os modismos inspirados no que a televisão e cinema produzem. Entretanto, esses dois caminhos, se seguidos à risca, podem provocar uma diminuição do poder artístico, pois, no caso do primeiro, submeteria as obras de arte a meros documentários, enquanto o segundo as empurraria para a doutrinação.
Por sorte, o verdadeiro labor artístico é mais do que imitação. Sua riqueza está em superar aquilo em que se inspira. É também a sua segurança. Basta lembrar a imagem apresentada no filme Excalibur (1981), em que Merlin chamava a realidade de dragão e ainda dizia que olhar diretamente para ele é ter a alma queimada, ou seja, é entregar-se à loucura. Então, para enxergá-la melhor, o mais adequado seria observar o seu reflexo – as manifestações artísticas. E tal é a magia de A Confissão da Leoa (2012), o mais novo romance do escritor moçambicano Mia Couto.
A narrativa se baseou na excursão que o autor fizera pelo norte de Moçambique em 2008, quando se deparou com a notícia de que leões estavam atacando a população daquela região. Tal qual ocorre em Kulumani, localidade em que se passa a história. É lá que mora Mariamar, narradora de metade do livro. A outra metade está a cargo de Arcanjo, caçador contratado para dar fim ao terror que assola aquela população. Mas há algo mais do que os nomes mítico-poéticos que os unem, algo mais do que um encontro que tiveram no passado. Ambos são vítimas de um histórico de vida despedaçado.
Conforme se vai mergulhando nos relatos que os dois vão montado, esquece-se a expectativa de um reencontro e começa-se a vislumbrar um painel fortíssimo, típico de Mia Couto. Depara-se com uma sociedade em que mulher é literalmente vista como não-humana, não-gente; em que um marido se dá ao direito de costurar (não se está falando em sentido conotativo!) a vagina da esposa quando ele precisa viajar; em que um pai abusa sexualmente da filha e esta é que é vista como a vilã; em que uma mulher é estuprada por um grupo só porque invadiu um espaço sagrado masculino – e ela ainda ter como resposta a conivência das autoridades.
Todos os exemplos arrolados acima – e há muitos outros – causam-nos horror, porque estamos de fora, pertencemos a um mundo dito civilizado. E quando nos defrontamos com o narrado, vemos que, se parte daquela sociedade encara tudo isso como natural, outra parte, perdedora, considera-a uma selvageria. Mas esta não faz nada, silencia-se. Somente a obesíssima Dona Naftalinda, cônjuge do administrador, protesta, mas diante da inércia do seu meio, não produz eco. E o mais interessante é que se sente nas entrelinhas um embate entre um velho e um novo mundo, entre uma velha e uma nova África. Nesse ponto, é preciosa a oposição que é feita entre as galinhas domesticadas (aliás, grande símbolo das mulheres de Kulumani, massacradas pelo machismo – aves que não voam) e os urubus que tomam o lugar dessas aves quando a missão católica portuguesa se vai.  
Toca-se aqui em um dos elementos mais vitais do romance. A necessidade de voar, de liberdade, de direito ao desenvolvimento de todas as potencialidades, misturando-se à necessidade de sobreviver à miséria. Aqui está a representação da força feminina, que nutre A Confissão da Leoa. A força feminina ligada à geração de vida. E ligada à terra, à alimentação, à sobrevivência. Ligada, portanto, à pátria, à mãe África. Aqui Mia Couto permite-nos alargar o olhar interpretativo. Fala-se, então, de um continente desrespeitado, colocado na periferia, explorado durante a colonização e, independente, massacrado pela guerra civil. É o despedaçamento da pátria que acaba fabricando os ataques da leoa. Ou que acaba explicando o despedaçamento psicológico das personagens do livro. 
Mas como garantir que a fragmentação da personalidade é apenas fruto de condições externas? E se for verdade a tese bíblica de que somos todos de um barro ruim? E se o homem mergulhou nessa matança por sua má índole mesmo? Tanto que essa carnificina ocorreu antes e depois da independência. Reforçar-se-ia então uma ideia reiteradamente citada na obra, a de que tudo está dentro de nós. O mal, portanto, não é externo.
Mia Couto, portanto, confirma em A Confissão da Leoa porque é um dos melhores escritores africanos do século XX, já que mergulha na essência humana e consegue expô-la. E o faz de uma maneira eficiente, pois seu realismo mágico acaba se tornando uma válvula de escape para que se veja os destroços com que está lidando. Utilizando-se da linguagem do mito, faz-nos entender os problemas de nossa essência fazendo-nos vivê-los, senti-los graças à força da bem empregada primeira pessoa. E sem que precisemos ser moçambicanos para tal. Sua capacidade de enfocar o universal no regional lembra grande mestres, como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Machado de Assis, para ficar nos brasileiros. Vale a pena lê-lo.
  

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