domingo, 30 de setembro de 2012

Chaves: representação do inferno?




Na edição 1896 do Jornal Opção, de Goiás, surgiu uma análise muito boa do seriado Chaves, feita pelo historiador Ademir Luiz. De acordo com o texto, esse programa de televisão seria uma representação do inferno. O autor usa argumentos sólidos, como o fato de D. Clotilde vez por outra perguntar por Satanás. De acordo com o estudioso, essa entidade é transmorfa, por isso há episódios em que é mencionada como um gato, em outros como um cachorro. Além disso, essa mulher é a bruxa do 71, o que permite duas referências interessantes – a primeira é a de que na tradição cristã as feiticeiras são associadas ao príncipe das trevas; a segunda é a de que os algarismos que compõem o número de sua casa, quando somados, formam o 8, o número que representa o infinito – e que é justamente o da casa em que mora o protagonista da série.


Ainda assim, há problemas na exposição do autor, como o argumento de que a atriz que foi chamada para interpretar essa moradora ser uma ex-miss, o que faria com que atuasse o castigo pelo pecado da vaidade. Não se deve confundir ator com personagem, do contrário, acabar-se-ia limitando a potencialidade da dramaturgia. E mesmo que o autor de programa, Roberto Gómez Bolaños, tenha tido alguma intenção sutil com tal escolha, ela teria sido tão discreta que não teria surtido eficiência em seu discurso. Mas, no momento, vamos nos concentrar nos pontos positivos da análise feita pelo goiano.
O protagonista desse humorismo no original não tem nome. No México a atração é chamada de El Chavo del Ocho, ou seja, “O Moleque do Oito”. No Brasil houve uma adaptação do termo hispânico “chavo” para “Chaves”. E de fato, como aponta Ademir Luiz, em nenhum momento o nome do menino é mencionado. Além disso, esse garoto fora acolhido por uma senhora que nunca é vista. Como ela mora na também nunca vista casa 8, número que, deitado, representa o infinito – Fernando Pessoa já fazia no começo do século XX essa mesma associação ao se achar especial por ter nascido em 1888, ano que apresenta três vezes esse signo –, essa mulher passa a ser entendida como a morte, a entidade eterna que intercepta os vivos.


Dentro desse raciocínio, a vila em que se passam essas histórias nada mais seria do que uma representação do inferno, com direito a vários tipos de demônios torturando as almas que para lá foram condenadas. O Satanás da Bruxa do 71 é Belzebu, entidade ligada à vaidade. Paty e tia Glória seriam súcubus, manifestações femininas do demônio e que têm a função de tentar com sua sedução os homens, no caso Chaves e Seu Madruga. Hector Bonilla seria um íncubo, versão masculina dos súcubos, com a função de tentar as mulheres. Nhonho seria Mammon, que castigaria Seu Barriga, a avareza em pessoa, fazendo-o destroçar sua fortuna. Popis seria Azazel, instigando a fúria de Chiquinha. Godinez seria Leviatã, atiçando a inveja intelectual de Quico.
Nesse campo, não é gratuito que Jaiminho, o carteiro, sempre se mostra cansado, pois, trazendo mensagens para os moradores, na verdade já mortos, seria um médium esforçando-se sobre-humanamente para estabelecer contato. Além disso, o fato de Chaves ser moleque, ou seja, o que apronta, o que subverte os valores, facilita que se entenda que se trata de um pecador.
É também um excelente argumento a ideia de os amigos da personagem principal representarem pecados capitais. Quico simbolizaria a inveja, tanto que é o mais abastado da vila, mas sempre tem inveja dos brinquedos que os outros têm, bem mais pobres que os dele. Chiquinha seria prisioneira da ira, que a faz atropelar com seu triciclo tudo e todos. Para piorar, como é a mais fraca do grupo, sua raiva não é extravasada, limitando-se a chorar e chorar. O Chaves, nesse sentido, seria o representante da gula, pois não para de pensar em comer.
Entretanto, há problemas nessas aproximações. O protagonista, em sua fome insaciável, fala sempre em presunto e chega a chamar seu professor de Linguiça, referências, para Ademir Luiz, à carne de porco, alimento proibido por Deus, o que aumentaria a carga de seu pecado. Mas tal restrição só se aplica às culturas judaica e muçulmana, não à cristã, pelo menos conforme ela se consagrou. Além disso, esse menino também mostra sua gula também com churros. Ademais, qual criança não se mostra esganada?
Seu Barriga, por sua vez, seria a alegoria da ganância, pois vive ostensivamente fazendo cobrança. Entretanto, causa estranheza falar que sua Brasília amarela é referência à corrupção brasileira. Em primeiro lugar, o México também viveu problemas com a apropriação indevida de recursos públicos. Sem falar que a menção a esse automóvel pode ser só da tradução. Então por que aqui se aceita a adaptação à cultura brasileira e no nome do protagonista tão é rejeitada?


Torce-se o nariz, por sua vez, para a caracterização de Seu Madruga. É certo que ele pode representar o absurdo pecado da preguiça, pois sempre está gastando muito mais esforços para realizar suas tarefas, principalmente pagar o aluguel atrasado. De fato, são 14 meses que nunca chegam a 15, o que levou o historiador a fazer mais considerações numerológicas: 14 = 7 + 7, pondo à tona um número com fortes conotações bíblicas, como a famosa 70 x 07, outra referência ao infinito.
A grande falha da análise está na associação de Chaves à ideia do infinito como suspensão do tempo, uma das características marcantes das penas do inferno. É por isso que nunca se sairia dos 14 meses de aluguel atrasado (mas como se chegou aos 14?). É por isso que D. Florinda e o Professor Girafales estariam numa espiral infinita de nunca saciarem o pecado da luxúria, a cada episódio sempre com convite para mais uma xícara de café, bebida de consagradas propriedades estimulantes. Um detalhe muito importante está sendo esquecido: a forma em que o programa se apresenta, ou seja, o seu gênero.
Não se está dizendo que a suspensão do tempo não pode funcionar em arte como representação de uma condenação infernal. Vemo-la no filme 1408 (2007), em que o pior da tortura está na possibilidade claustrofóbica de toda a agonia se repetir integralmente a cada hora. Ou em Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, em que de fato o inferno, palavra crucial no romance, está no fato de as personagens estarem condenadas a um massacre social e existencial sem saída. Mas, note-se, nesses dois casos a forma em que se manifesta o texto possibilita essa interpretação.
Já no caso de Chaves, Ademir Luiz falha ao não perceber que se trata de um seriado humorístico popular, por isso as repetições quase que ad infinitum. É o mesmo que ocorre em Zorra Total e A Praça é Nossa. A forma acaba determinando o tema – cada um dos vários episódios naturalmente repete elementos. Não é um romance de pouco mais de cem páginas. Não é um filme de cerca de duas horas de duração. Além disso, o caráter claustrofóbico visto pelo historiador, que afirma que tudo se concentra em vila, rua, restaurante, sala de aula, é também característica desse gênero, que prima pela pobreza cenográfica.
Entretanto, tais pontos não invalidam a beleza do texto produzido pelo historiador, pois cumpriu uma excelente tarefa pertencente ao que há de mais nobre no ser humano: a produção e circulação de ideias. Seus argumentos, em boa parte, são bem embasados, basta observar a proporção dos pontos positivos arrolados aqui em relação aos negativos. É isso que torna a sua leitura prazerosa, principalmente para quem tem mente aberta e, portanto, livre de preconceitos. Além disso, não se está mais no tempo de proibição do livre pensamento. É lamentável, portanto, a desproporção na página do artigo do autor entre as inúmeras ofensas e as pouquíssimas contra-argumentações. Vivemos tempos sombrios. O inferno não está em Chaves. Está aqui.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O Cortiço e o Naturalismo



Típico cortiço do Rio de Janeiro no final do séc. XIX.
Foto de autoria desconhecida.

Publicado em 1890, O Cortiço, de Aluísio Azevedo, garantiu de imediato a boa consideração do público e da crítica, sendo visto até hoje como o mais bem acabado exemplar do Naturalismo no Brasil. Esse mérito é bastante justo, pois é fruto do esforço do autor por atingir esse objetivo, já que chegou inclusive a frequentar disfarçadamente os locais em que indivíduos da classe baixa – tipo predominante nesse romance – se encontravam.
Essa atitude de observar in loco o material que iria fazer parte de sua obra revela a preocupação que os naturalistas tinham de adotar os métodos científicos na construção de suas obras. Deve-se lembrar que tais escritores se achavam cientistas da natureza, do comportamento humano. Por isso o tratamento do texto como se fosse um documento, com o consequente acúmulo de detalhes descritivos, a abordagem imparcial, objetiva e a visão materialista. Dessa forma, as diferentes personagens são como ratos que estão sendo estudados em um imenso laboratório que é a estalagem de João Romão. Vemos, por exemplo, como a compulsão de Marciana por limpeza – sua casa estava sempre úmida de tanto que a tinha lavada – termina por dar no surto psicótico em que mergulha, enlouquecendo por ter a filha desonrada.
Entretanto, com o advento da Psicologia como a ciência mais adequada para a análise do caráter humano, o Naturalismo acaba perdendo seu posto. Ainda assim, O Cortiço continua sendo uma obra que atrai um considerável número de leitores. O que explica esse fenômeno? Parece que de alguma forma o passar do tempo permitiu que os valores típicos da época e do estilo literário fossem decantados, permitindo vir à tona o que esse romance tem de precioso. Não se está negando sua filiação ao cânone naturalista. Está-se, isso sim, defendendo a tese de que esse livro é mais do que os ditames dessa estética.
Um dos aspectos que chamam a atenção na grande obra de Aluísio Azevedo é a apresentação, sem mistificação, da vida em sua vitalidade. É a energia primitiva, muito bem representada na expressão do narrador como a força de machos e fêmeas no prazer animal de existir. Vemo-la em duas personagens, que a princípio seguem os mesmos caminhos, pois são fruto da mesma raça, do mesmo meio, do mesmo momento histórico. Entretanto, é com eles que o autor põe por terra a onipotência do Determinismo a explicar e comandar o destino do humano. Em algum momento da vida dessas personagens haverá uma bifurcação, o que fará com que sigam caminhos completamente antagônicos. Trata-se de Jerônimo e João Romão.
O primeiro português é trabalhador, forte como um touro, poupador, com potencial para a evolução, tanto que mantém a filha em um colégio interno, garantia de um futuro melhor. Entretanto, apaixonado por nossa terra, mostra-se vulnerável ao meio, o que o fará vítima da sedução de Rita Baiana. Unido a ela – ou seja, vencido –, torna-se um fraco: vira alcoólatra, perde a força para o trabalho, endivida-se, abandona mulher e filha. A maior crueldade aí talvez seja o fato de a menina ser desligada da escola, tendo, portanto, anuladas suas chances de desenvolvimento por meio da educação. Em suma, Jerônimo involui.
O segundo português é também trabalhador (mas nada honrado), poupador e com potencial de evolução. Todavia, não se mostra vulnerável ao meio em que se encontra. Ao contrário, submete-o à sua vontade. Sua companheira, Bertoleza, é sua amante, mas não é sua paixão. É apenas um objeto, uma máquina para satisfazer suas necessidades na venda e na cama. O mesmo impulso utilitarista o norteará na relação com os moradores do cortiço: serão peças úteis na ascensão econômica e depois social, que se dará com a entrada na família do nobre Miranda.
Enfim, com a apresentação desses dois casos percebemos que O Cortiço em alguns momentos é mais do que um romance esquemático que se limita a respeitar as leis do Naturalismo. Ele tem um lado humano, pois, mesmo que não lide com personagens de carne e osso, mostra impulsos que existem dentro de todos nós, seja a força que temos para a evolução, mesmo que esta se circunscreva apenas ao aspecto pecuniário, seja a que temos para a involução. É por isso que sua leitura é prazerosa.

domingo, 23 de setembro de 2012

A febre zumbi - qual seu sentido?



Jung (1875-1961) criou um conceito muito importante para quem quer conhecer o comportamento humano: inconsciente coletivo. Trata-se de um conjunto de elementos culturais que nos são herdados e que são comuns a todos nós, tornando-se um depósito de arquétipos, ou seja, de modelos de representações de fatos da existência. Alguns dizem que esse elemento explica de forma muito melhor a alma humana do que a antropologia, a filosofia ou até a própria psicologia. No mínimo, seguramente é uma abordagem interessante e diferente, pois mexe com simbologias. Se é perigoso ou pelo menos difícil olhar diretamente para a Medusa, é mais eficaz olhá-la por meio de um reflexo.
Seguindo esse raciocínio, há elementos valiosos nos filmes blockbusters. É certo que neles a riqueza intelectual é inversamente proporcional à comercial, com seus esquemas repetidos como garantia de bilheteria, com sua valorização dos efeitos especiais em detrimento da exercitação das habilidades afetivas e cognitivas do público. Ainda assim, o sucesso que obtêm é um ingrediente que não pode ser desprezado, pois é indicativo de que algo está fazendo eco no espírito de quem consome esse tipo de produção. Em outras palavras, eles são pistas para que entendamos o zeitgeist, o espírito de um momento.
Adotada essa perspectiva, torna-se bastante útil observar a febre zumbi que se tem manifestado nos filmes Resident Evil (2002) e 28 Days Later (2002), no HQ The Walking Dead (2003), na série de televisão homônima (2010), no romance Pride and Prejudice and Zombies (2010) e inclusive no nacional Memórias Desmortas de Brás Cubas (2010). A pandemia chegou até mesmo a gerar flash mobs como as zombies walks. O que pode estar atrás disso?

Fotograma de Resident Evil: Afterlife (2010)

Quando se tem em mente que zumbi inicialmente era uma lenda que falava de um morto que por meio de vodu se transformava em um servo sem consciência e vontade próprias, tão abaixo da nossa condição que sua voracidade o transformava em canibal, muitos significados valiosos vêm à tona. Eles são na verdade uma representação do medo que nós temos de perder o nosso bem precioso, que é o caráter humano. E se essa fobia está espalhada em tantas mídias, é porque de certa forma isso parece já estar acontecendo. Observe como em Resident Evil o T-Virus se espalha em um ambiente de trabalho cheio de departamentos, elevadores, divisórias, tubulações de ar condicionado, com gente atarefada e de roupa social. Uma empresa como tantas outras. É o nosso cotidiano que está lá, é a nossa vida. Na verdade, a nossa não-vida, porque é uma instalação subterrânea em que não se vê a luz do dia. Para ganharmos nosso pão (ou ração), tornamo-nos servos (zumbis) de interesses econômicos, representados por grandes corporações, que, nos dizeres do filósofo Zygmunt Bauman, não têm pátria. A unidade de Tóquio da Umbrella foi destruída? Transfere-se seu potencial para outra localidade. Não é isso que o capitalismo tem feito ultimamente, sobrevivendo a crises deslocando facilmente sua riqueza de um ponto a outro?

The Walking Dead, HQ criada em 2003 por Robert Kirkman e Tony Moore para a Image Comics.

Outro aspecto bastante relevante é o fato de essa epidemia estar ligada ao tema do apocalipse zumbi, que tem sua origem no clássico A Noite dos Mortos Vivos (1968). Trata-se um filme em preto e branco, de orçamento parco, mas que, apesar dessas deficiências, ou graças a elas, tornou-se um ícone do gênero. Lá, a explicação para o fim dos tempos está numa sonda a Vênus que voltara ao nosso planeta contaminada. Hoje, é um produto da guerra biológica. Valores diferentes de épocas diferentes para expressar a mesma fobia: o medo de que o mundo com o qual estamos acostumados desapareça. E se esse receio se faz tão presente, acaba expressando uma atitude ambígua: ao mesmo tempo em que tememos que tal catástrofe aconteça, queremos também que se efetive, pois já sentimos um cansaço com o estado em que tudo se encontra. De fato, todo mito apocalíptico tem em seu bojo um mito soteriológico.
Enfim, a febre zumbi que assola nossos meios culturais deve ser entendida, conforme tudo o que foi discutido aqui, como uma manifestação dos anseios em que se encontra a nossa espécie. Ela pode não estar percebendo conscientemente os perigos a que está exposta, mas a maneira com que se apega a histórias com esse tema indica que inconscientemente já o captou. O que já é uma réstia de esperança.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O Iluminado - A Natureza do Terror



O Iluminado (1980), filme de Stanley Kubrick baseado no romance homônimo de Stephen King publicado em 1977, faz parte do que a crítica especializada chama de tríade do terror. Seus companheiros são O Bebê de Rosemary (1968) e O Exorcista (1973). O grande valor dessa obra está na apresentação de um crescendo de suspense, o mesmo ingrediente que foi resgatado de forma eficiente em Atividade Paranormal (2007). O que não quer dizer que este filme é comparável àquele. A diferença é gigantesca: aquele é superior por ser mais denso psicologicamente. Para o público de hoje, porém, acomodado a um frenético terror descerebrado escatológico ou pornográfico, concentrado em mutilações que dão uma estranha vazão a um sadomasoquismo, a obra de Kubrick pode parecer chocha no seu aspecto clean e muitas vezes monótono. Mas para os mais crescidos, essa película se mostra produção de primeira linha, pois lida com questões valiosas para a compreensão do comportamento humano. Analisemo-las mais detidamente.
O argumento de O Iluminado apresenta-nos uma família composta por um pai, Jack Torrance, escritor em crise de criatividade, uma mãe, Wendy, figura sufocada pelo perfeccionismo de sua progenitora, e um garoto, Danny, que tem o dom de comunicar-se com entidades transcendentes, daí o título da obra. Esse grupo, bastante amoroso e unido, isola-se durante o inverno no Hotel Overlook. É nessa espécie de ostracismo voluntário que testemunharemos o processo de radical decadência psicológica.
Na verdade, o filme lida de forma competente com os ingredientes essenciais do gênero a que pertence. A começar, deve-se lembrar que o terror está ligado à necessidade que Platão apontou como essencial a todos nós: a catarse, ou seja, o alívio e a purgação que se sente ao se passar, graças à arte, por experiências ruins, assustadoras. É por isso que os protagonistas são uma família amorosa, pois assim nos identificamos com ela e sentimos a mesma angústia a que são submetidos. E nesse ponto está o que se pode entender como utilidade da arte – bem melhor experimentarmos por meio da ficção acontecimentos escabrosos do que encará-los na vida real.
Entretanto, o aspecto catártico é insuficiente para explicar a especificidade do terror, principalmente o da espécie que é vista em O Iluminado. É necessário ter mente também o conceito que Freud atribui a essa classe. De acordo com o psicanalista, tal categoria de literatura – e cinema não deixa de ser uma manifestação literária – lida com o que ele chamou de “das Unheimlich”, termo que não encontra tradução eficaz em português. Trata-se de um fenômeno que está surpreendentemente num campo entre estranho, sinistro, próximo, doméstico, comum e ao mesmo tempo oculto. É o interdito, ou seja, aquilo que temos noção que existe, mas não queremos assumir, e por isso jogamos para debaixo do tapete. Ainda assim, o nosso inconsciente, senhor dos subterrâneos de nossa psique, consegue avisar de maneira simbólica, para driblar a censura racional do consciente, que esses fatos estão vivos.
Mas que conteúdo escondido esse filme quer revelar? Para se chegar a uma resposta possível, é importante observar algumas de suas simbologias.
O primeiro signo que pode ser apontado é o labirinto. Ele está presente no planejamento paisagístico do Hotel Overlook, já que existe esse tipo de construção, feita de vegetação, e que fará parte de um momento crucial da trama. Esse elemento é encontrado também na decoração do edifício. Basta notar os corredores em que Danny passeia e, mais importante, o desenho dos tapetes e carpetes, que segue um padrão que não deixa de ser também uma manifestação desse emaranhado arquitetônico. E há uma cena, na qual Jack mostra sua insânia, em que a fotografia cria um efeito surpreendente, colocando a cabeça do ator à frente de um quadro, fazendo-a ocupar a posição central dentro de um labirinto. Fica a ideia de que a mente está enredada em uma armadilha, o que de fato é o tema do filme. Tanto que essa mesma prisão está representada nos fatos que se repetem no suceder do tempo, criando uma circularidade inescapável.


Além disso, se se lembrar que o padrão da decoração dos tapetes sugere o estilo navajo, e se se lembrar que o hotel foi construído sobre um cemitério indígena, mais ingredientes entram para a compreensão da película. É como se a riqueza do prédio se baseasse no solapamento do elemento nativo americano. Então se começa a entender que esse edifício é nada mais do que a representação dos Estados Unidos, que se erigiram à custa do massacre do povo autóctone lá encontrado.
De fato, ter em mente que essa hospedagem é uma representação em microcosmo da nação norte-americana explica a quase infinita enumeração que o cozinheiro Dick Hallorann faz dos itens que compõem a despensa, como a sugerir a abastança daquele país. É o suficiente para que tenham uma vida tranquila, isolados do resto do mundo, o que não deixa de ser uma alegoria do padrão de vida estadunidense. Ademais, o fantasma do zelador Delbert Grady se refere com ênfase ao cozinheiro usando o termo “nigger”, bastante depreciativo e que está ligado às práticas racistas que tanto notabilizaram os EUA em seu passado nefasto.
Então, a nação mais poderosa do planeta é dona de uma riqueza incomparável, mas que se mostra sangrenta – daí a expressividade de tirar o fôlego da cena apresentada no trailer acima – ao se basear na opressão e na alienação. É um aspecto que aquele povo não quer enxergar, mas que faz parte do DNA deles. É o interdito. E a função do gênero ao qual O Iluminado pertence é colocar à tona esses problemas, o que com bastante êxito. É por isso que vale a pena vê-lo.   

domingo, 16 de setembro de 2012

A rapsódia: Homero, Liszt, Gershwin, Queen



Busto helênico de Homero no British Museum.

O leitor dO Magriço Cibernético já deve estar acostumado com a ideia de que texto é um conjunto de elementos que, conectados entre si, acabam estabelecendo coerência e, consequentemente, sentido. Isso ficou bastante claro no post de 8 e no de 26 de fevereiro. Assim, como foi visto em 1º de março, quando um elemento não está bem ligado ao conjunto, ele pode provocar problemas na mensagem. Ou, quando isso é feito propositalmente, conforme se viu em 3 de março, essa dissonância pode ser um aspecto valioso capaz de trazer mais riqueza ao que se está comunicando. Mas, de uma forma ou de outra, estamos lidando com uma união de partes que têm certa relação. Hoje precisamos entender outro tipo de arranjo, a rapsódia.
Na verdade, o primeiro conceito que se tem desse tipo de composição está ligado à Grécia Antiga, na figura de Homero, criador da Ilíada e da Odisseia. Esse suposto autor (na verdade, é bastante questionável sua existência) teria circulado entre o povo grego e, coletando as diversas histórias que lhe foram contadas, tornou-se um rapsodo, ou seja, alguém que acabou fazendo poemas que são a colagem de todos esses elementos que captou de sua etnia.
Durante o Romantismo, escola literária que se consagrou pela valorização da cultura popular como reforço dos padrões nacionalistas, renasce o conceito de rapsódia, agora entendido como uma composição musical em que há a incorporação de vários trechos de canções populares. A mais famosa delas parece ser a Rapsódia Húngara nº 2 (1847), de Franz Liszt (1811-1886), em que houve a absorção de várias melodias, algumas ciganas, que o autor ouvira em sua terra natal, a Hungria. Observe como a música vai assumindo diferentes feições e andamentos:


O que chama a atenção nessa peça é que ela é mais um exemplo para seu autor, que era também pianista, praticar seu exibicionismo, pois executá-la exige uma perícia extrema. Outro fato notável é que essa obra ficou tão famosa que apareceu em diversos desenhos animados, como o do Tom e Jerry (1946), do Pernalonga (1946) do Pica-Pau (1954), do Pernalonga e até em uma cena de Uma Cilada para Roger Rabbit (1988), no antológico duelo entre Patolino e Pato Donald.
Já no Modernismo, outro período literário famoso pela valorização da cultura do povo, o norte-americano George Gershwin (1898-1937) compôs sua Rhapsody in Blue (1924), em que se notam influências do jazz, que à época ainda não tinha ganhado o status de arte nobre, erudita. Vemo-la aqui na excelente versão que a Disney produziu para o filme Fantasia 2000 (1999):


Mais recentemente surgiu outro exemplar dessa espécie, o Bohemian Rhapsody (1975), do Queen. Nessa canção, vemos a junção de elementos díspares, até de línguas diferentes (há até utilização do árabe no meio do discurso em inglês), que um leitor desatento, como a crítica despreparada da época, pode imaginar que é o puro nonsense típico do rock.


Observe a introdução de tom feérico que dura uns 50 segundos, parecendo forçar uma pausa do nosso cotidiano, pois algo especial será apresentado para nós. Vem então uma balada de sonoridade melosa que vai até mais ou menos 2min35. Nela se expressa a angústia de quem acaba de cometer um pecado (o assassinato mencionado pode ser também entendido em sentido figurado), o que provoca a perda recente da inocência – daí as constantes referências desesperadas à mãe. Após isso entra um solo frenético de guitarra, que alguns entenderam como a morte na cadeira elétrica, mas mais seguramente pode ser visto como um mergulho no inferno, literal ou não. A partir de 3min04 a canção ganha um jeito de ópera, com a grandiosidade do duelo de solo de voz e coros. As frases “Spare him his life from this monstrosity” (“Poupe sua vida dessa monstruosidade”), “Bismillah! No, we will not let you go” (“Bismillah [expressão árabe que significa “Em nome de Deus”]! Nós não vamos deixar você partir”), “Beelzebub has a devil put aside for me“ (“Belzebu tem um demônio reservado para mim”) é uma pista para se entender que o que está havendo aqui é um duelo pela alma do pecador. Lembra o final de Fausto (1808), de Goethe (1749-1832), em que céu e inferno lutam pela alma do protagonista que dá nome ao livro. Em 4min07 a música assume um andamento de rock pesado. Parece a agonia de quem se sente irremediavelmente condenado. Em 4min55 outro tom assume, mais calmo, dominado pela frase “Nothing really matters to me “ (“Nada realmente importa para mim”). É a resignação, é a aceitação do destino, ou da consequência das escolhas assumidas. O peso do livre-arbítrio.
Essa disposição para misturar elementos diferentes para compor uma representação do espírito de uma época ou de um povo também pode ser encontrada na literatura brasileira do Modernismo. É o que vemos em Macunaíma (1928), de Mário de Andrade (1893-1945), em que há a junção da cultura do índio, do negro e do branco para erigir o caráter do Brasil, e também em Guimarães Rosa (1908-1967), que se comportou como um verdadeiro rapsodo ao coletar os elementos que ouvia do sertanejo mineiro e fundi-los ao repertório da cultura universal e compor obras magnânimas como Sagarana (1946) e Grande Sertão: Veredas (1956). Mas esse é um assunto a ser desenvolvido em outro momento mais apropriado.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

A tradição na modernidade



Miró, Interior Holandês I (1928).

O mundo contemporâneo está marcado por uma ideia de valorização da modernidade, entendida, dentro de um pensamento viciado em “evolucionismo histórico”, como uma ruptura com o passado e um esquecimento dele. Ser moderno é buscar incessantemente, a qualquer custo, o novo. O antigo vira algo desprestigiado. Todo o universo de conhecimento que seria nossa herança é rotulado como velho, antiquado, ultrapassado.
Na verdade, essa fome pela novidade tem-se mostrado nociva. O problema não está no novo em si. Não se está defendendo uma postura retrógrada, reacionária, conservadora, que veja mudanças como prejudiciais. O fato grave é que a desvalorização do passado impede o amadurecimento de nossa sociedade. É importante o aproveitamento de nossa herança cultural. Trata-se de um conjunto de experiências que precisa ser absorvido e digerido para que se possibilite o desenvolvimento de nosso fator humano.
Mergulhado em tal impossibilidade, o homem e o mundo (que nada mais é do que projeção daquele) tornam-se vazios, sem sentido, sem identidade. Não se reflete, não se analisa, não se estuda o que vivemos e o que fazemos, pois isso é analisar o passado e o que importa é o agora. Herança, tradição, experiência são palavras que recebem toda uma carga semântica pejorativa.
O problema é que esse esvaziamento amputa o que nos faz humanos. Temos uma identidade, uma cultura, uma ética, coisas que nos são transmitidas e que serão transferidas. Mas se o que vale é o agora, que despreza o passado, de onde virá nossa identidade, personalidade, cultura, ética, já que tudo isso é memória? Como produzi-las, se tudo isso vem do passado?
A consequência drástica é um esvaziamento total. O mundo contemporâneo tem uma ética, uma cultura, uma identidade defeituosas. Em suma, uma humanidade defeituosa. Esse vazio torna-nos alienados. O “eu”, as relações subjetivas e afetivas se enfraquecem. Sobrevive-se uma valorização, um culto do objeto em si, a reificação. Tudo agora é objeto, é mercadoria. Até mesmo a cultura. Aliás, questiona-se se há de fato cultura ou se essa nada mais é do que somente mercadoria.
Nesse contexto, recorrer a uma velha simbologia medieval não é exagero. Nós nos assemelhamos ao dragão que guarda em sua caverna uma donzela com a qual ele não poderá fazer nada. Acumulamos sem utilidade alguma, pois o que “colecionamos”, sem passado, sem ser digerido e, portanto, sem futuro, já que não será transmitido, não nos torna humanos, não nos acrescenta nada. E, assim com o dragão, caminhamos para uma postura destrutiva – podemos destruir nossa donzela, quem irá resgatá-la e, no fogo escabroso de nossa alienação, até nós mesmos.
Essas não são observações que giram sobre um abstrato vago, impalpável. Elas se referem a comportamentos presentes em nosso cotidiano até mesmo escolar. Existem aqueles que pregam que o ensino de arte, principalmente literatura, deva se ocupar apenas com textos contemporâneos, ou pelo menos modernistas. Especial atenção deveria ser dada às manifestações mais recentes – cinema em lugar de romances, música pop em lugar de música erudita ou mesmo música popular brasileira. Por que colocar em sala de aula Auto da Barca do Inferno e Memórias Póstumas de Brás Cubas e não Harry Potter e Crepúsculo?
O quadro apresentado acima consegue paradoxalmente dar pistas sobre a importância da tradição. Trata-se de uma obra do Modernismo, Interior Holandês I (1928), de Miró (1893-1983). À primeira vista, parece um conjunto caótico de formas geométricas de traço simplificado, qualidade esta que se aplica também às suas cores, que se mostram básicas, dispensando o jogo de nuance e de luz e sombra. Enfim, um universo abstrato que elimina o sentido, já que tudo é aleatório.
Entretanto, um olhar mais atencioso conseguiria divisar elementos conhecidos no universo dessa pintura. Saltaria à vista, por exemplo, após o esforço de adaptação a essa nova forma de arte, um cachorro no canto inferior esquerdo do quadro. Captada essa personagem, nosso olhar começaria a perceber que a figura acima desse animal é algo próximo ao que entendemos como ser humano e que este estaria tocando um instrumento musical, provavelmente de corda. Estabelecidos esses parâmetros palpáveis, um mundo reconhecível estaria se materializando. No canto superior esquerdo se divisaria uma janela, aberta para o exterior, o que nos faria entender que essa obra retrata um interior – daí o seu título, que agora faz sentido.
Ainda assim, alcançado esse estágio de compreensão, Interior Holandês I estaria amputado de muito de sua personalidade. De fato, da maneira como foi analisado até aqui, o quadro se resume a um exercício pictórico, assim como boa parte da arte do Modernismo passaria a ser mero exibicionismo ilógico (algumas vezes o é mesmo). É o problema que os alunos têm, por exemplo, quando leem Sentimento do Mundo (1940), de Carlos Drummond de Andrade, ou Macunaíma (1928), de Mário de Andrade: entendem sem dificuldade as frases, mas não conseguem captar o seu sentido. O problema, muitas vezes, está no já mencionado vício de se desprezar a tradição.
A solução? O conhecimento da tradição artística. Quando ela é respeitada, e isso se manifesta não pelo simples fato de copiá-la ou venerá-la, mas eficazmente pelo fato de conhecê-la criticamente, boa parte das obras do Modernismo passa a ganhar riqueza de significado. No presente caso, basta ter em mente O Tocador de Alaúde (1661), de Hendrik Martenszoon Sorgh (1610?-1670) para que nossa leitura acabe se encorpando.


A observação dessa obra barroca faz-nos ter melhor conhecimento do que se exibe na composição modernista. Entendemos que Miró simplificou o quadro de Sorgh, ou que pelo menos o reduziu à sua essência, como alguém que se recorda de um sonho intenso e que se vai desvanecendo após o despertar. De fato, a arte, para os modernistas, não precisa ser uma cópia fotográfica da realidade, mas uma recriação de sua essência. É por causa disso que vemos que alguns elementos do quadro holandês que tocaram a sensibilidade do pintor espanhol foram destacados na obra deste. Assim, o cachorro, que nos observa, ganha destaque na obra do modernista, assim como o desgrenhado esfiapado do cabelo do músico, a brancura da mesa, o volume da coluna junto à janela. A mensagem que se tira? O novo, por mais moderno que seja, só consegue ganhar plenitude de sentido se não se perde de vista a tradição.
Percebe-se então que o entendimento de obras contemporâneas só se faz de maneira digna se se respeitar (não se está defendo a veneração cega) a tradição que as trouxe até nós. Até mesmo Harry Potter ganha mais sentido se se tem em mente às referências que nele existem a elementos da cultura clássica e medieval. Até mesmo Crepúsculo encorpa-se com o entendimento de que é uma saga herdeira (ainda que aguadamente) da tradição do Romantismo. Renegar isso é atrofia intelectual.

domingo, 9 de setembro de 2012

A Transversalidade na Arte: Ravel, Drummond, Béjart



Dois posts (26 de agosto e 05 de setembro) discorreram sobre a ineficácia de se querer uma pureza de plataformas estéticas. A intenção era mostrar como a arte acaba enriquecida quando não se apega a critérios eugênicos. No primeiro texto, lidou-se apenas com formas musicais. No segundo, fez-se uma ponte entre música e dança. Agora o passo será um pouco mais complexo, pois envolverá música, dança e literatura.
A sinfonia em questão é o popularíssimo Bolero (1928), do francês Maurice Ravel (1875-1937). Trata-se de uma composição que já nasceu para a dança, pois atendeu ao pedido da bailarina russa Ida Rubinstein (1885-1960). Sua instrumentação é bastante interessante, pois apresenta uma melodia básica que vai sendo executada repetida, sucessiva e exaustivamente por cada instrumento da orquestra, atingindo um clímax em que todos os músicos tocam energicamente, até tudo ser brusca e estonteantemente cortado.  
Entretanto, a coreografia que se vê aqui é a criada em 1961 por Maurice Béjart (1927-2007). Há nela algo das culturas orientais (traço típico desse criador de dança), como a expressividade que o corpo adquire graças à sua sinuosidade. Observe como a movimentação corporal é diferente daquela a que estamos acostumados, concentrada na cintura para baixo (vale a pena, para reforçar a compreensão dessa oposição Ocidente-Oriente, ler o post de 18 de março). Basta notar que a disposição dos pés, assim como a movimentação das mãos, lembra muito da dança da Índia e Indonésia. E na segunda metade da apresentação os integrantes do Tokyo Ballet vão reforçar com seu gestual esse contato com a ritualística oriental, destacando o que fica da cintura para cima.
O interessante é que nada das inovações dessa arte depõe contra a obra de Ravel. Para um observador desatento, o que se vê é uma chatice, pois parece repetitivo. Na verdade, um olhar mais apurado veria que há uma riqueza de gestos que vão acrescentando “mais do mesmo” à dança que está sendo exposta. Semelhante ao que o músico fez com sua obra. É importante também notar que contribui mais ainda para a riqueza dessa peça, fruto do encontro de setores culturais diferentes, o fato de a dançarina, a francesa Sylvie Guillem, ter iniciado sua carreira na ginástica artística. A graça de seus braços e pernas talvez venha das habilidades adquiridas nesse setor, o que só tem a encorpar o que ela está interpretando. Mais um gol contra os puristas.
Por sua vez, o contato com o poema “Bolero de Ravel”, presente em Sentimento do Mundo (1940), de Drummond, ajuda a dar mais compreensão ao que se está degustando. Não se trata de um texto inspirado na obra do músico, mas de uma adaptação na forma poética dos elementos que estão dispostos na sinfonia. Leiamo-lo:

          A alma cativa e obcecada
          enrola-se infinitamente numa espiral de desejo
          e melancolia.
          Infinita, infinitamente...
          As mãos não tocam jamais o aéreo objeto,
          esquiva  ondulação evanescente.
          Os olhos, magnetizados, escutam
          e no círculo ardente nossa vida para sempre está presa,
          está presa...
          Os tambores abafam a morte do Imperador.

 O encontro entre as duas obras encorpa a compreensão que se tem delas. O caráter repetitivo da composição do francês está na ideia que Drummond utiliza da espiral que se enrola “infinita, infinitamente...”. E o poeta transferiu para a música as suas inquietações com o mundo em que vivia (vale a pena reler os posts de 12 e 16 de agosto). A melodia acaba expressando a angústia de uma existência que acaba se esvaziando, se inutilizando por se transformar num eterno desejar, nunca realizado: "As mãos não tocam jamais o aéreo objeto / esquiva ondulação evanescente". Por um lado, seria ruim o homem alcançar facilmente a sua satisfação, pois o sentido da vida desapareceria facilmente. Mas o paradoxal é que o que nos mantém em pé, o desejar que nunca se alcança, é o que justamente detona nossa existência – a espiral infinita do querer a que “nossa vida para sempre está presa”. Até que chega a morte – expressa, na música, pelo final brusco; na coreografia, pelo cessar abrupto da movimentação; no poema, pelo único verso que não termina em enjambement ou em reticências: “Os tambores abafam a morte do Imperador”. Três formas diferentes de expressar o mesmo fato.
Comprova-se, então, que a transferência de um ideal artístico de uma plataforma para outra, quando bem realizada, não o deturpa. Ao contrário, só enriquece a compreensão que se tem do trabalho estético, mesmo quando se trata de uma obra tantas vezes executada – como o Bolero, de Ravel – a ponto de muitas vezes cair no mau gosto e no clichê. É um expediente, portanto, válido e que deve ser não só elogiado, mas incentivado.